Biogás como bateria

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autor: Heleno Quevedo de Lima
publicado em 10/11/2025 18:00 e atualizado em 10/11/2025 18:16
aproximadamente 8min12s de leitura
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Descubra como o biogás pode atuar como uma bateria química renovável, oferecendo armazenamento energético de longa duração, segurança elétrica e soluções sustentáveis para o desafio da intermitência solar e eólica.
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Foto: Arquivo pessoal HQL.
Operação e Manutenção (O&M)
Artigo Técnico

O biogás como bateria química

Vantagens estratégicas do armazenamento de longa duração

 

A crescente integração de fontes solares e eólicas na matriz elétrica brasileira traz um desafio fundamental: a intermitência. Essa característica está relacionada à variabilidade natural desses recursos, a geração solar depende da incidência de luz solar e a eólica, da intensidade dos ventos. Quando há indisponibilidade desses elementos, a produção de energia diminui, exigindo maior flexibilidade e planejamento do sistema elétrico.

No entanto, não é apenas a escassez que gera impactos. O excesso de geração em determinados períodos também pode representar um problema para o Sistema Interligado Nacional (SIN). Nessas situações, ocorre o chamado “curtailment intermitente”, que consiste na redução ou interrupção forçada da geração de energia renovável, mesmo quando há sol ou vento disponíveis. Isso acontece por limitações técnicas da rede elétrica ou por desequilíbrios entre oferta e demanda, que podem comprometer a estabilidade do sistema.

A prática do curtailment é uma medida operacional adotada para preservar a segurança e o equilíbrio do sistema elétrico nacional, sendo regulamentada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Embora necessária em alguns contextos, ela evidencia a importância de aprimorar o planejamento e a infraestrutura do SIN, ampliando a capacidade de integração das fontes renováveis variáveis.

A geração solar e eólica ocorre quando há sol e vento, e não necessariamente quando a demanda por energia é maior. Para garantir um fornecimento contínuo, tornam-se essenciais os sistemas de armazenamento, que guardam o excedente produzido e o disponibilizam nos períodos de escassez. Enquanto as baterias eletroquímicas se destacam nas soluções de curto prazo, o biogás e o biometano surgem como alternativas estratégicas de longa duração. Biodigestores, gasômetros e cilindros de armazenamento funcionam como uma “bateria química” renovável, capaz de unir armazenamento energético, gestão de resíduos e segurança no suprimento elétrico.

A superioridade deste sistema torna-se evidente ao analisar a primeira limitação das baterias de íon-lítio ou chumbo-ácido: a inviabilidade econômica e técnica para o armazenamento de longa duração. Sistemas BESS (Battery Energy Storage System) são ideais para serviços de rede que exigem resposta em segundos ou para suprir a rede por algumas horas. No entanto, seu custo por kWh armazenado torna proibitivo guardar energia para dias, semanas ou estações inteiras. O biogás, por outro lado, resolve este problema através da conversão direta de energia em grupo gerador. A biomassa residual é transformada em um biocombustível gasoso, o biogás, que após purificação se torna biometano. Este gás pode ser estocado em gasômetros ou comprimido em cilindros, de forma semelhante ao Gás Natural Veicular (GNV), por períodos virtualmente ilimitados e sem perdas significativas por autodescarga, um fenômeno que afeta todas as baterias convencionais.

Esta capacidade de armazenamento estável e de longo prazo confere ao biogás sua segunda vantagem principal: a despachabilidade total. A energia, agora na forma química do metano, aguarda passivamente até o momento de maior demanda na rede elétrica. Então, mediante simples comando, é queimada em um grupo gerador para produzir eletricidade de forma instantânea e confiável, independentemente de ser noite ou o vento ter cessado. Embora a eficiência de conversão final para eletricidade seja inferior à de uma bateria, este é um trade-off estratégico. A prioridade deixa de ser a eficiência do ciclo único e passa a ser a confiabilidade e a resiliência do sistema elétrico como um todo, atuando como uma geração de base renovável e uma reserva estratégica.

A terceira e mais distintiva vantagem do sistema de biogás é sua multifuncionalidade intrínseca, um atributo que nenhuma tecnologia BESS pode replicar. O biodigestor não é meramente um "container" de energia; é uma peça central da economia circular. Enquanto armazena energia química, realiza simultaneamente o tratamento de resíduos orgânicos de origem agrícola, industrial ou urbana. Este processo gera um coproduto essencial: o digestato, que pode ser convertido em um biofertilizante rico em nutrientes que retorna ao solo, reduzindo a dependência de fertilizantes sintéticos. Adicionalmente, ao capturar o metano proveniente da decomposição de resíduos, um gás de efeito estufa, dezenas de vezes superior ao do CO2, o sistema produz um ganho ambiental duplo: gera energia renovável e mitiga emissões perigosas. Desta forma, a "bateria de biogás" gera valor econômico não apenas pela eletricidade, mas também pela gestão de resíduos e pela produção de insumos agrícolas.

Finalmente, a infraestrutura de armazenamento físico do biogás e biometano oferece flexibilidade e escalabilidade. Em nível local, os próprios biodigestores e os gasômetros de baixa pressão atuam como o pulmão do sistema, garantindo um fluxo contínuo de gás para o gerador. Para aplicações de maior escala e distribuição, o biometano pode ser comprimido e armazenado em cilindros de alta pressão, uma forma de estocagem com alta densidade energética. Esta característica permite seu transporte e uso direto como GNV renovável ou, ainda, sua injeção na rede de gás natural existente. Este conceito, conhecido como "Power-to-Gas" renovável, transforma a vasta infraestrutura de gasodutos em um sistema de armazenamento de energia nacional, uma opção logística completamente fora do alcance das baterias (BESS).

A afirmação de que o conjunto biodigestor-gasômetro-cilindro constitui a "melhor bateria" deve ser compreendida sob a ótica do valor estratégico e da resiliência sistêmica. As baterias eletroquímicas (BESS) são a solução técnica superior para a velocidade e a eficiência em janelas de tempo curtas. Contudo, o sistema de biogás é a solução superior para a segurança energética de longo prazo, considerando custo da tecnologia, eficiência, a gestão ambiental integrada e a criação de uma economia circular. 

O biogás e os sistemas BESS não são tecnologias concorrentes, mas complementares. Enquanto as baterias gerenciam os picos de frações de segundos ou minutos, a bateria química do biogás garante a energia dos dias, das semanas e das estações (quando necessário armazenamentos mais longos), reduzindo de forma significativa a exposição aos riscos da intermitência, posicionando-se como um pilar indispensável para o planejamento da matriz energética. O biogás é uma bateria estratégica que deve ser considerado no planejamento energética para a redução dos riscos de curtailment.

 


 

Referência Bibliográfica

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