Do alicerce da Rio-92 aos desafios da COP30
As lições e o legado de dois Josés
Por Heleno Quevedo - Colunista do Portal Energia e Biogás
A correlação entre a Rio-92 e a COP30, que ocorre em Belém, é mais do que uma linha do tempo; é um espelho que reflete, com clareza crua, as tensões que ainda definem a governança climática global. Esta análise revela que os dilemas atuais foram vividos intensamente há três décadas na figura de dois secretários brasileiros de Meio Ambiente, cujas trajetórias são marcadas por suas origens gaúchas. José Lutzenberger (Porto Alegre, 17/12/1926 – 14/05/2002), o "profeta", defendia uma ruptura com o paradigma de desenvolvimento baseado em tecnologias "duras". José Goldemberg (Santo Ângelo, 27/05/1928), hoje com 97 anos e testemunha viva desta história, personificou o pragmatismo necessário para costurar acordos. Juntos, seu legado conflitante e complementar oferece um mapa para a COP30: a visão de Lutz define a ambição necessária, enquanto a lição de Goldemberg alerta para os limites da política real.
Contexto Histórico: A Rio-92 como "COP 0"
A Rio-92 não foi um ponto de chegada, mas o alicerce sobre o qual toda a arquitetura climática foi erguida, uma verdadeira "COP 0". Foi neste palco que o Brasil, sob os holofotes do mundo, encenou pela primeira vez o drama que se repete anualmente: o conflito intransponível entre o crescimento econômico tradicional e os limites ecológicos do planeta. A conferência consolidou conceitos como "desenvolvimento sustentável" e deu origem às Convenções do Clima e da Biodiversidade, mas, mais importante, expôs a ferida que ainda sangra: a dificuldade de traduzir a urgência científica em ação política concreta.
Os dois Josés: O Profeta da Luz e o Diplomata de Ouro
José Lutzenberger e José Goldemberg, nomes que carregam montanhas em seus significados. Ambos compartilham o nome José, que em hebraico significa “aquele que acrescenta”, de fato personificaram, na alvorada da agenda ambiental brasileira, visões complementares e conflitantes que ainda repercutem em plena COP30. A correlação entre a Rio-92 e a conferência de Belém não é uma mera linha do tempo.
- José Lutzenberger: O Profeta do "Caminho Brando", foi Secretário Nacional do Meio Ambiente de 15 de março de 1990 até 23 de março de 1992.
Lutzenberger, cuja origem do sobrenome remete a aquele que veio da montanha de luz, era um crítico civilizatório. Ele cunhou a metáfora dos "Dois Caminhos": a "autopista dura" do crescimento predatório versus o "caminho brando" das tecnologias descentralizadas e de baixo impacto. Suas propostas para a Rio-92 soaram como heresia: um fundo para compensar países por não explorarem florestas e metas obrigatórias contra o desmatamento. Três décadas depois, estes são pilares centrais do debate na COP30. Sua demissão forçada, após denunciar corrupção, simboliza a exclusão da voz que exige uma mudança de paradigma, não apenas ajustes.
- José Goldemberg: O Cientista Pragmático, assumiu como Secretário Nacional de Meio Ambiente interino em 23 de março até 14 de julho de 1992.
Goldemberg, que significa montanha de ouro, assumiu para salvar a credibilidade do país anfitrião após a saída de Lutzenberger. Seu papel foi de gestão de crise. Enquanto o profeta preparou o terreno ideológico, o diplomata garantiu que o evento acontecesse. Trouxe credibilidade científica e uma linguagem que ressoava com o establishment, focando em viabilizar acordos como a Agenda 21. Seu ceticismo, ao admitir que a Rio-92 teve poucos resultados práticos, é um legado crucial: um lembrete de que a celebração de um acordo não se traduz automaticamente em mudança real.
A COP30 (2025) e o Espelho de 1992: a materialização do conflito
Nessa primeira semana da COP30 (10-12/11/2025), os temas em negociação são praticamente a materialização viva do legado dos dois Josés.
- O "Espírito de Lutz" na arena das negociações: As ideias de Lutzenberger, que pareciam utópicas nos anos 90, são centrais para a COP30. Sua defesa das "tecnologias brandas" ecoa no protagonismo dos biocombustíveis como biogás e biometano, fontes renováveis e descentralizadas que empoderam comunidades e tratam resíduos, um antídoto ao modelo centralizador dos fósseis. As discussões em Belém sobre a descarbonização do agronegócio e os mecanismos de financiamento para a transição energética justa são desdobramentos diretos de sua visão. E colocam os biometanocultores como agentes diretos de protagonismos econômico, energético e ambiental. No entanto, a resistência de setores ligados ao agronegócio tradicional e aos combustíveis fósseis mostra que a batalha pelo "caminho brando" ainda é ferrenha.
- O "Dilema de Goldemberg" em tempo real: A tensão vivida por Goldemberg, entre a necessidade de um acordo e a frustração com sua insuficiência, define as atuais negociações da COP30. Os impasses concretos desses primeiros dias de evento (novembro de 2025), como a operacionalização do fundo de perdas e danos e a definição de metas claras de adaptação, refletem esse dilema. Os negociadores, como Goldemberg em 1992, navegam entre a pressão por ambição (o "espírito de Lutz") e a realidade política e econômica, buscando um consenso que, frequentemente, é a versão menos ambiciosa do que a ciência exige. O risco de um resultado "mais do mesmo" é o fantasma que o legado de Goldemberg alerta.
Conclusão: O passado interroga o futuro
O legado da dupla Lutzenberger-Goldemberg oferece a lente através da qual devemos julgar a COP30. De um lado, a visão profética e intransigente de Lutzenberger, nascido em 1926 e falecido em 2002, serve como bússola, apontando para a transformação radical: descentralização, eficiência real e justiça. Do outro, o pragmatismo de Goldemberg, nascido em 1928 e hoje, aos 97 anos, uma testemunha da história, funciona como um manual de sobrevivência na complexa geopolítica do clima.
A reflexão final, portanto, é inevitável e urgente: Trinta anos depois, o caminho que a COP30 está pavimentando é o "brando" de Lutz ou apenas uma versão "menos dura" do mesmo paradigma? Estamos, de facto, descentralizando o poder energético e repensando nossa relação com a natureza, ou apenas trocando as fontes de energia dentro de um sistema que continua centralizador, consumista e socialmente excludente? A resposta que emergir de Belém, à luz do legado dos dois Josés, definirá não apenas o sucesso desta conferência, mas a trajetória do planeta nas próximas décadas. O alicerce de 92 foi posto. A COP30 mostrará se estamos construindo sobre ele um futuro resiliente ou meramente reformando a mesma casa insustentável.
Assim como esses Josés acrescentaram caminhos e compromissos, cabe a nós acrescentar estratégias e ações concretas.
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Autor: Heleno Quevedo
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