O que ainda limita o crescimento da cadeia do biogás?
Colunistas do Portal Energia e Biogás compartilham suas visões.
Por Crislaine Flor, Fábio Soares, Heleno Quevedo, Yaimé Delgado e Oscar Valmanã
1. INTRODUÇÃO
O setor de biogás enfrenta uma série de limitações que variam de país para país, frequentemente moldados por características específicas como o arcabouço regulatório, infraestrutura, cultura, maturidade tecnológica e acesso a recursos naturais, financeiros e humanos.
Neste artigo especial do Portal Energia e Biogás, nossos colunistas reuniram percepções comparativas sobre alguns desafios enfrentados por oito países com experiências relevantes no setor: Alemanha, China, Índia, Suécia, Espanha, Reino Unido, Itália e Brasil (por ordem alfabética).
As reflexões aqui apresentadas foram construídas a partir da análise de reportagens, intercâmbio com profissionais do setor e diálogo com diferentes atores da cadeia de valor.
Nosso objetivo é inspirar debates e provocar novas ideias para impulsionar o desenvolvimento do biogás no Brasil, com base nas lições e obstáculos identificados no cenário internacional.
2. TOP 5: DESAFIOS PARA EXPANDIR
A seguir, organizamos os cinco principais pontos que, na percepção do nosso grupo de colunistas, representam os desafios mais recorrentes ao crescimento da cadeia do biogás. Essas reflexões surgiram a partir de conversas, análises comparativas e trocas de experiências entre os autores.
2.1. Alemanha
2.1.1. Saturação de mercado: com um grande número de plantas já instaladas, a competição por matéria-prima e a otimização de custos se tornam desafios maiores.
2.1.2. Adaptação a novas legislações: a evolução e atualização das leis de incentivo e subsídios, como a Lei de Energias Renováveis (EEG), exigem que as plantas se adaptem rapidamente para manter a rentabilidade. Regras claras garantem a padronização, otimização e a qualidade dos produtos e serviços das plantas em operação.
2.1.3. Otimização da produção de biogás: com o foco em eficiência, o desafio é maximizar a produção de biogás a partir de diferentes substratos, buscando inovações tecnológicas.
2.1.4. Gestão de subprodutos: o gerenciamento do digestato (subproduto do biogás), incluindo seu uso como fertilizante e a conformidade com as regulamentações ambientais, é um desafio contínuo.
2.1.5. Digitalização e automação: a implementação de tecnologias avançadas para monitoramento, controle e otimização remota das plantas requer investimentos e expertise.
2.2. Brasil
2.2.1. Instabilidade regulatória e burocracia: a falta de um arcabouço regulatório consolidado e a complexidade burocrática para licenciamento e conexão à rede elétrica dificultam o desenvolvimento e a operação de novas plantas.
2.2.2. Logística e disponibilidade de matéria-prima: A ampla dispersão geográfica das fontes de resíduos agropecuários, industriais e urbanos, aliada à infraestrutura logística precária, eleva os custos de coleta e compromete o suprimento contínuo de matéria-prima.
2.2.3. Acesso a financiamento: a dificuldade em obter linhas de crédito com taxas de juros competitivas e prazos de pagamento adequados desestimula investimentos no setor.
2.2.4. Capacitação técnica: a limitada disponibilidade de profissionais qualificados para operação e manutenção de plantas de biogás representa um gargalo técnico relevante para a expansão do setor. .
2.2.5. Percepção pública e social: a falta de conhecimento sobre os benefícios do biogás e a resistência a projetos em algumas comunidades podem gerar obstáculos para a implantação de novas unidades.
2.3. China
2.3.1. Escala e padronização: O desafio está em replicar modelos de plantas de biogás em larga escala, mantendo a qualidade e a eficiência, e em padronizar processos.
2.3.2. Gestão de resíduos urbanos e industriais: A diversidade e a heterogeneidade dos resíduos, especialmente os urbanos e industriais, demandam tecnologias robustas e soluções adaptadas.
2.3.3. Qualidade do gás e conexão à rede: garantir a purificação do biogás para atender aos padrões da rede de gás natural e a infraestrutura para conexão são desafios técnicos e financeiros.
2.3.4. Poluição ambiental: em algumas regiões, a operação de plantas de biogás enfrenta desafios relacionados à mitigação de odores e ao tratamento de efluentes.
2.3.5. Financiamento e incentivos sustentáveis: assegurar que os programas de financiamento e os incentivos sejam sustentáveis a longo prazo para o desenvolvimento do setor.
2.4. Espanha
2.4.1. O marco regulatório permanece complexo e em constante evolução: o marco regulatório está sendo consolidado, mas ainda incompleto. A Espanha está atrasada na adoção de marcos legais relacionados à segurança energética e resiliência climática.
2.4.2. Limitações econômicas e falta de instrumentos financeiros estáveis: a maior parte dos projetos de biogás só se torna viável financeiramente com o apoio de instrumentos financeiros e fiscais estáveis, como subsídios, ajuda direta, incentivos ou mecanismos que protejam contra as oscilações do preço do gás fóssil.
2.4.3. Gestão de substratos e digestatos: a dispersão geográfica e a ausência de modelos de gestão coletiva dificultam a eficiência da coleta e transporte dos substratos. Barreiras regulatórias, falta de incentivos e infraestrutura inadequada dificultam o uso agrícola do digestato.
2.4.4. Infraestrutura insuficiente e baixa implementação tecnológica: é necessário maior investimento em infraestrutura para aumentar a capacidade de produção de biogás e a purificação do biometano para que este possa ser injetado na rede de gás natural.
2.4.5. Falta de consciência social e rejeição local: dezenas de casos de oposição local ao desenvolvimento de projetos e construção de plantas de biogás devido a preocupações com odores, impacto visual e o tráfego dos resíduos. Em muitas comunidades autônomas e municípios rurais há protestos e bloqueio de projetos devido à pressão dos moradores.
2.5. Índia
2.5.1. Coleta e transporte de biomassa: a dispersão de pequenas propriedades rurais e a infraestrutura precária dificultam a coleta e o transporte eficientes de biomassa.
2.5.2. Manutenção e operação: a falta de treinamento e acesso a peças de reposição pode comprometer a operação contínua e a vida útil das plantas, especialmente as de menor porte.
2.5.3. Qualidade da matéria-prima: a variabilidade na qualidade e composição dos resíduos disponíveis pode afetar a estabilidade da produção de biogás.
2.5.4. Aceitação social e cultura: em algumas comunidades, a falta de familiaridade com a tecnologia e a percepção de que a planta pode gerar odores ou pragas pode ser um obstáculo.
2.5.5. Acesso à eletricidade e venda do gás: a infraestrutura elétrica limitada em áreas rurais dificulta a injeção do biogás na rede, e a criação de mercados para o biogás comprimido ainda é um desafio.
2.6. Itália
2.6.1. Burocracia e licenciamento: o processo complexo e demorado para obter as licenças necessárias para a construção e operação de plantas de biogás é um desafio.
2.6.2. Gestão de resíduos orgânicos: a Itália tem um grande potencial para o uso de resíduos orgânicos, mas a coleta seletiva e a gestão eficiente ainda precisam ser aprimoradas em algumas regiões.
2.6.3. Envelhecimento das plantas existentes: muitas plantas foram construídas há alguns anos e enfrentam o desafio de modernização e otimização para manter a eficiência.
2.6.4. Incentivos e apoio governamental: a estabilidade e a clareza dos mecanismos de incentivo são cruciais para o desenvolvimento contínuo do setor.
2.6.5. Conexão à rede e venda do biometano: a infraestrutura para a injeção de biometano na rede de gás e a criação de mercados para o biometano como combustível veicular são desafios importantes.
2.7. Suécia
2.7.1. Integração com a economia circular: o desafio é otimizar a integração das plantas de biogás na economia circular, buscando sinergias com outras indústrias e sistemas de resíduos.
2.7.2. Inovação e pesquisa: manter a liderança em pesquisa e desenvolvimento para novas tecnologias de produção de biogás, purificação e uso do digestato.
2.7.3. Disponibilidade de substratos específicos: a Suécia tem um foco em resíduos urbanos e industriais, e o desafio é garantir o fornecimento contínuo e a qualidade dos substratos.
2.7.4. Competição por usos da biomassa: a competição por biomassa para outros fins (bioenergia, biocombustíveis líquidos) pode afetar a disponibilidade e o custo para as plantas de biogás.
2.7.5. Otimização da produção de biogás e biometano: o foco em produzir biometano de alta qualidade para injeção na rede de gás ou uso como combustível veicular exige tecnologias avançadas e processos rigorosos.
2.8. Reino Unido
2.8.1. Custo de capital e operacional: o alto custo de investimento inicial e os custos operacionais contínuos podem ser um desafio para a viabilidade financeira dos projetos.
2.8.2. Incerteza política e regulamentar: as mudanças nas políticas governamentais e nos esquemas de incentivo podem impactar a rentabilidade e o planejamento de longo prazo.
2.8.3. Disponibilidade de substratos: a competição por resíduos e a necessidade de garantir um fornecimento constante de matéria-prima de qualidade são desafios logísticos.
2.8.4. Conexão à rede e infraestrutura: a capacidade da rede elétrica e de gás para absorver a produção de biogás, bem como a infraestrutura de conexão, podem ser limitantes.
2.8.5. Aceitação pública e aAmbiental: a necessidade de abordar preocupações da comunidade local sobre odores, tráfego e impacto visual de novas plantas.
3. ANÁLISE DOS DESAFIOS
O Brasil apresenta uma posição intermediária: compartilha desafios típicos de países em desenvolvimento, mas também enfrenta obstáculos semelhantes aos de mercados mais consolidados, principalmente nas áreas regulatória, logística e de financiamento.
A partir da análise comparativa dos desafios nos oito países, é possível afirmar que o Brasil ocupa uma posição mista, com características de países em desenvolvimento, mas também desafios comuns a mercados maduros, especialmente no que diz respeito à regulação, logística e financiamento.
3.1. Instabilidade Regulatória e Burocracia (Brasil)
Esse é um gargalo mais crítico no Brasil do que na maioria dos países analisados.
- Alemanha, Suécia e Reino Unido enfrentam desafios regulatórios, mas no contexto de ajustes finos em políticas já consolidadas.
- Índia e Itália compartilham de burocracias complexas, porém, o Brasil se destaca negativamente pela instabilidade contínua e falta de previsibilidade, dificultando o planejamento de longo prazo.
📌 Situação do Brasil: Abaixo da média, aqui o problema é mais estrutural e persistente.
3.2. Logística e Disponibilidade de Matéria-Prima
O Brasil apresenta desafios semelhantes à Índia e China, mas com agravantes logísticos pela extensão territorial e baixa capilaridade de transporte.
- Países como Suécia, Alemanha e Reino Unido já têm cadeias logísticas bem estruturadas para coleta e distribuição de biomassa.
- Índia e China também enfrentam dificuldades de coleta, mas com forte atuação de cooperativas ou apoio estatal em alguns projetos.
📌 Situação do Brasil: Na média inferior, infraestrutura deficiente e dispersão das fontes agravam a viabilidade dos projetos.
3.3. Acesso a Financiamento
Este é um desafio comum, mas o Brasil enfrenta um contexto mais restritivo do que países europeus.
- Espanha, Itália e Reino Unido também apontam dificuldades, mas contam com mais instrumentos de financiamento verde e linhas específicas para energias renováveis.
- No Brasil, a falta de linhas de crédito estáveis, com taxas e prazos adequados, ainda é um dos principais impeditivos.
📌 Situação do Brasil: Abaixo da média, especialmente em comparação com países com marcos regulatórios e bancos de fomento consolidados.
3.4. Capacitação Técnica
O desafio da formação de mão de obra especializada é compartilhado com Índia e China, mas com diferenças regionais.
- Alemanha e Suécia possuem sistemas técnicos e universitários integrados ao setor de biogás.
- No Brasil, a formação técnica ainda é incipiente, e há escassez de operadores e engenheiros especializados em plantas.
📌 Situação do Brasil: Na média dos países em desenvolvimento, com necessidade urgente de investimentos em capacitação profissional.
3.5. Percepção Pública e Social
Aqui o Brasil está alinhado com a média global, embora existam desafios específicos.
- Índia, Reino Unido, Espanha e Itália também relatam resistência social, preocupações com odores e falta de compreensão dos benefícios.
- A aceitação social no Brasil tende a melhorar com projetos bem-sucedidos e campanhas de comunicação estratégica.
📌 Situação do Brasil: Na média, um desafio que pode ser superado com educação ambiental, transparência e envolvimento comunitário.
4. RESUMO COMPARATIVO
Em comparação aos países analisados, o Brasil apresenta avanços importantes, especialmente no aproveitamento do potencial agroindustrial e na integração do biogás com outras fontes renováveis. No entanto, ainda enfrenta desafios significativos em temas como previsibilidade regulatória, incentivos financeiros, infraestrutura de distribuição e articulação entre os diferentes elos da cadeia. Enquanto países como Alemanha e Suécia demonstram maturidade em políticas públicas e tecnologia, o Brasil ainda busca consolidar um ambiente mais favorável à expansão do setor em escala nacional.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Onde o Brasil se posiciona?
O Brasil não é o país com os maiores desafios em todas as frentes, mas se destaca negativamente em pontos estruturais fundamentais, como a instabilidade regulatória, a logística deficiente e o acesso restrito a crédito. Esses entraves estruturais dificultam o amadurecimento do setor e colocam o país em desvantagem frente a mercados mais consolidados.
Por outro lado, o potencial brasileiro é imenso. A abundância de resíduos agroindustriais, urbanos e agropecuários, somada à crescente demanda por fontes renováveis, posiciona o Brasil como um dos países com maior margem para crescimento sustentável na área de biogás.
Nesse contexto, a principal diferença em relação aos países mais maduros, como Alemanha, Suécia e Reino Unido, é que enquanto esses já enfrentam desafios relacionados à otimização de processos e modernização de plantas existentes, o Brasil ainda está na fase de consolidação de suas bases estruturais e institucionais, necessárias para permitir uma expansão consistente e de longo prazo.
💡 Essa constatação reforça a urgência de se construir uma metodologia colaborativa e periódica para identificar os principais gargalos do setor. É necessário engajar diferentes atores da cadeia de valor, academia, poder público, startups e sociedade civil em um diagnóstico coletivo, transparente e orientado à ação efetiva.
Essa constatação reforça a urgência e a oportunidade de criarmos uma metodologia colaborativa e periódica para identificar os principais gargalos do setor. Uma abordagem que envolva os diversos atores da cadeia, setor produtivo, academia, poder público, startups e sociedade civil, para promover um diagnóstico coletivo, transparente e orientado à ação.
6. CONVITE
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E para você, que atua, pesquisa de mercado ou acompanha de perto o setor: esses Top 5 representam, de fato, os principais desafios para o avanço da cadeia do biogás?
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